A tortuosa história do Congresso Pan-Africano
A principal reunião de congregação do movimento pan-africanista enfrenta dificuldades desde o início
O 9.o Congresso Pan-Africano, que iria começar no próximo dia 29 de outubro, em Lomé, no Togo, foi adiado para data a ser ainda definida. O evento tem como mote a “Renovação do Pan-Africanismo e o Lugar da África na Governança Global”. O evento foi convocado na conjuntura da Década das Raízes Africanas e da Diáspora, para o período de 2021 a 2031, proposta em 2021 pelo próprio Togo, e aprovada pela União Africana.
O Congresso Pan-Africano não tem uma frequência específica, pois é uma convocação ampla, definida pelo conjunto da sociedade africana, que congrega o espírito do Movimento Pan-Africanista, com a participação de governos, sociedade civil, membros da diáspora (população afrodescendente que vive nos países fora do continente) e ativistas em geral. O Congresso Pan-Africano é anterior - iniciou-se formalmente em 1919 - e, em termos simbólicos, está acima da União Africana, que, aliás, é resultado direto do Movimento Pan-Africanista. Togo preparava, com apoio da União Africana, um evento de grandes proporções, para tentar retomar o movimento pan-africanista, importante fundamento das lutas contra a segregação racial, posteriormente dos movimentos de independência e, por fim, da própria criação da União Africana. A reunião iria ser o ápice da chamada Década Internacional dos Afrodescendentes, aprovada pela resolução 68/237, aprovada na Assembleia Geral da ONU, em dezembro de 2013, cobrindo o período de janeiro de 2015 a dezembro de 2024. Cancelamentos e adiamentos não são, porém, novidade na história do Congresso.
A edição anterior, realizada em março de 2015, em Gana, estava planejada para ocorrer ainda em 2014, mas foi adiada em meio às dificuldades de preparação e ao surto de ebola que atingia a África Ocidental. Essa 8.a edição do Congresso talvez seja a mais confusa da iniciativa, pois, além de ter sido adiada, há autores que consideram uma reunião realizada em janeiro de 2014, em Joanesburgo como a 8.a edição do Congresso. Além disso, mesmo a reunião realizada em Gana ficou incompleta e uma de suas resoluções foi a realização de uma segunda fase do Congresso, em maio 2016, possivelmente na África do Sul. Essa reunião, porém, nunca foi realizada. Coincidentemente, aliás, a Conferência de Saúde Pública da África, marcada para novembro deste ano, no Marrocos, também foi adiada, sem data ainda definida.
Desafios operacionais e orçamentários, pandemias e surtos infecciosos se juntam a desencontros políticos e rivalidades internas no rol das dificuldades para os congressos pan-africanos. É corrente, também, a avaliação de que os congressos ainda enfrentam a resistência dos países europeus - a edição deste ano seria financiada pela União Africana, que, por sua vez, recebe recursos da União Europeia e dos países europeus. A Europa, aliás, na conjunção dos recursos da UE e dos países isoladamente, a maior doadora da União Africana, incluindo fundos aplicados nas operações de paz. O Congresso Pan-Africano é expressamente anticolonial e, portanto, anti-europeu e essa equação - dinheiro europeu financiando um evento abertamente anti-europeu – politicamente, não fecha. O boicote e represália dos europeus são antigos e marcam a história do Congresso Pan-Africano desde os seus primórdios, como veremos abaixo.
Participação do Brasil
O Brasil participa com destaque dos Congressos Pan-africanos, especialmente nas últimas edições, dada a importância da população afrodescendente do Brasil no contexto da diáspora africana. Estava prevista uma delegação considerável, com a presença de ativistas, artistas e representantes governamentais, incluindo a ministra da Cultura, a artista baiana Margareth Menezes.
Salvador tem um papel especial nessa ligação do Brasil com o movimento pan-africanista. Trata-se da grande cidade fora da África com a maior porcentagem da população - 73,21% - composta por afrodescendentes, ou negra, sendo 49,07% de pardos e 34,14% de pretos. A população da cidade encolheu 9,6% entre os censos de 2010 e 2022, mas a população de negros aumentou 11% no período. Em Salvador, 1,2 milhão se consideram pardos e 825 mil se consideram pretos, totalizando 2 milhões de afrodescendentes, ou negros - é a mesma população de negros que vivem na cidade de Nova York, mas lá, eles são “apenas” 23% da população total. Em números absolutos, o Rio de Janeiro tem mais negros do que Salvador - entre os cariocas, os negros são 3,4 milhões, sendo 2,4 milhões de pardos e 1 milhão de pretos -, mas a porcentagem sobre a população total é de “apenas” 54,5%, muito próxima da porcentagem geral do Brasil, que é de 56%. Do mesmo modo, em algumas pequenas cidades baianas a porcentagem de afrodescendentes é ainda maior do que em Salvador, como a campeã Antônio Cardoso, onde 55% da população se considera preta e outros 37% se consideram pardos, totalizando 92% da população negra, mas, com uma população de apenas 11 mil pessoas, seu peso absoluto é pequeno. Salvador combina peso absoluto e alta porcentagem de população negra.
Por isso, a capital baiana foi escolhida simbolicamente, ainda em 2003, como capital da Diáspora. Em 2006, a União Africana definiu que a Diáspora se constituiria na sexta região da UA, e Salvador recebeu, em agosto de 2024, a Conferência Regional da Diáspora, um dos eventos regionais preparatórios para o 9.o Congresso. A cidade também recebeu, em 2006, a 2.a edição da Conferência de Intelectuais da África e da Diáspora, outro importante momento da mobilização do pan-africanismo.
Histórico do Congresso Pan-africano
Antes mesmo da partilha da África, em 1885, já havia começado nos EUA um movimento antirracista, mas dentro da Igreja, com a fundação, em 1815, da Igreja Metodista Africana, na Filadélfia, em resposta à segregação naquele país. O movimento foi acompanhado na África do Sul, na vertente conhecida como Etiopianismo, com base nas referências bíblicas àquele país, para se contrapor ao ambiente racista que emergia também nas colônias na África. Mais à frente, essas leituras bíblicas resultarão na criação do movimento Rastafari. Ainda nos EUA, o médico militar negro Martin Delany, lideraria o Movimento das Convenções dos Negros - coloured -, contra o racismo, nas décadas de 1850 a 1870. Os trabalhos do diplomata liberiano Edward Blyden, com forte penetração no país, e o ativismo político de Marcus Garvey, também serviam de base para a consolidação do movimento nos EUA. Uma vertente dos pesquisadores defende, inclusive, que essas iniciativas são a origem do movimento pan-africano unificado posterior, também em função da liderança, a partir de 1919, de William Du Bois, na organização dos Congressos Pan-Africanos. Importante também foi a influência desse ambiente nos EUA sobre Kwame Nkrumah, estudante de Gana que vivia naquele país no início do século XX, e seria um líderes do pan-africanismo e o primeiro presidente de Gana.
Enquanto se organizava nos EUA em torno da Igreja e do combate ao racismo na vida cotidiana, na Europa o pan-africanismo começava a se formar a partir de uma linha mais institucional. Em 1897, foi formada a Associação Africana, em Londres, sob a liderança do advogado caribenho Henry Sylvester-Williams, que organiza, já em 1900, em Londres, a 1.a Conferência Pan-africana, com 30 delegados, entre eles Du Bois. Em razão da I Guerra Mundial, o I Congresso - e não mais conferência - Pan-Africano, seguimento da reunião de 1900, seria organizado somente em 1919, em Versalhes, local das Conferências de Paz pós-I Guerra Mundial. O evento ocorreu apenas 3 meses depois do fim do conflito, com a presença de 15 países e 57 delegados - 12 africanos, 21 do Caribe e 16 dos EUA.
O Congresso enfrentou forte resistência dos governos dos EUA e do Reino Unido, que negaram a emissão de passaportes para negros participantes do evento, bem como da França, que dificultava os vistos para os que já tinham passaporte. Por isso, além de Du Bois, importante figura nessa época foi o então deputado senegalês Blaise Diagne, que conseguiu liberar vários vistos a delegados do Congresso. Ele acabou se distanciando do projeto das independências ao advogar a integração do Senegal ao espaço francês, em um movimento de adesão e assimilação. Ele, inclusive, foi nomeado prefeito de Dacar pelo governo francês, cargo que exerceu de 1920 a 1932.
Outra participante significativa desse primeiro evento foi a advogada jamaicana Emy Jacques, então secretária particular e futura esposa, a partir de 1922, de Marcus Garvey - fundador da Associação Universal para o Progresso Negro - UNIA -, inicialmente na Jamaica, em 1914, depois transferido para o Harlem, em Nova York, em 1916. O próprio Gravey não compareceu por decisão de Du Bois, que preferiu evitar que o evento fosse vinculado expressamente a Garvey, visto pelo governo dos EUA como muito próximo do comunismo. Por seu ativismo político, seria inclusive deportado dos EUA de volta à Jamaica em 1927. Com a coroação de Haile Selassie, na Etiópia, em 1930, Garvey daria início à religião Rastafari - emprestando a própria nomenclatura da nova religião da pronúncia em amarico da expressão Rei Tafari, sendo Tafari Mekonnen o nome civil de Haile Selassie. Interpretava a coroação do novo Imperador - alegadamente descendente de Salomão, conforme a cosmogonia etíope -, como sinal das profecias procedentes de sua leitura messiânica dos trechos em que a Bíblia cita a Etiópia. Morreu em 1940, em Londres, como símbolo, ainda que polêmico, do movimento negro, com influência sobre nascentes lideranças, e cultuado como profeta na religião que havia criado. Nessa época, Du Bois primava por pequenos avanços no processo de desmobilização da segregação. O caráter mais fortemente ideológico dos Congressos vai se intensificar somente a partir de 1945.
Os Congressos Pan-africanos prosseguiram, o 2.o ocorreu em 1921, com reuniões em Londres e, um mês depois, em Bruxelas; e a 3. edição, em 1923, em Londres e Lisboa. Essas edições funcionaram como seguimento, mas as agendas pouco avançaram. A 4.a edição, de 1927, em Nova York, já reuniu 208 participantes. O número de países representados caiu, entretanto, em razão do boicote dos governos da França, Reino Unido e EUA, sendo os primeiros na denegação de autorização de viagens de participantes e o último na concessão de vistos. Da África, apenas delegados de Gana, Serra Leoa e Nigéria, sob domínio britânico, e da Libéria. Um novo interregno mais longo, em razão da crise de 1929 e da II Guerra e, novamente, o movimento utiliza a mobilização gerada pelo fim de um conflito global para tentar fazer avançar a pauta, com a 5.a edição do Congresso, realizada em Manchester, no Reino Unido, apenas 5 meses após o fim da guerra, ainda em 1945.
O ponto de inflexão
A 5.a edição do Congresso, em 1945, tem natureza e profundidade diferente das anteriores. A conjuntura era favorável, pois os europeus estavam pressionadas pela posição anticolonial dos EUA -em plena expansão industrial- e começavam a planejar a desmobilização, inicialmente na Ásia, já em 1947, mas a seguir, certamente, na África. Com isso, Manchester atraiu a participação de lideranças de partidos africanos envolvidos com as lutas de independência em seus respectivos países - com destaque para Kwame Nkrumah, de Gana; Jomo Kenyatta, do Quênia; Hastings Banda, do Maláui; e Nnamdi Azikiwe, da Nigéria, que se tornariam presidentes de seus respectivos países e entusiastas de uma organização pan-africana.
Essa ideia viria a ser consolidada apenas 18 anos depois, com a criação, em 1963, da Organização da Unidade Africana, OUA, com a adesão de 32 países independentes à altura – a África do Sul só seria admitida depois do fim do Apartheid. Mas é nessa edição que são discutidos abertamente os processo de independência - abordagem impossível nos anos anteriores. Em Manchester, o tom da declaração final foi mais assertivo do que a das edições anteriores, com a firme proposição de que a independência era o único caminho para a superação dos problemas econômicos e sociais.
Mesmo que algumas reuniões do movimento pan-africano ainda fossem realizadas na Europa, como a I e II Conferência Internacional dos Escritores e Artistas Negros, em Paris e Roma, em 1956 e 1959, os próximos Congressos Pan-africanos já seriam realizados em solo africano, sob os auspícios da OUA: a 6.a edição seria realizada em 1974 - os anos 1950 e 1960 foram intensos para os processos de independência e não havia espaço para uma nova edição - , na Tanzânia; e a 7.a edição, realizada em 1994, em Uganda – os anos 1970 e 1980 foram intensos na luta contra as crises econômicas, e não havia espaço para uma nova edição.
Na edição de 1994, o clima era de otimismo e de relativa esperança, apesar dos longos anos de crise econômica. Era realizado poucas semanas antes das eleições que levariam Nelson Mandela à presidência da África do Sul, e significava o fim de um período de décadas de combate institucional à política de segregação. No esforço de superação da crise econômica, entrava em funcionamento a Comunidade Econômica Africana, criada por meio de tratado assinado em 1991, inspirado no modelo da Comunidade Econômica Europeia, e estabelecia um plano gradual de integração até a criação de um mercado comum africano. O tema das reparações econômicas pelo processo colonial entrou pela primeira vez oficialmente na pauta, com discussões sobre eventual implementação da Proclamação de Abuja, de 1993, sobre reparações em função da escravidão, do colonialismo e do neocolonialismo. No último dia do evento que celebrava a unidade africana, entretanto, a cerca de apenas 500 km de Kampala, se iniciava o genocídio em Ruanda, que causaria até julho daquele ano 800 mil mortes de tutsis e hutus moderados. O massacre em Ruanda, apesar de controlado ainda naquele ano, gerou uma sequência de eventos com consequências até hoje, com o espraiamento das tensões para a RDC. As tensões na região da fronteira com Ruanda, com a atuação do M-23, tem suas origens nesse incidente, mas serão tema de outro artigo.
A edição seguinte, a 8.a, ocorreria em Gana, em 2014, como antecipado, e seria o seguimento de uma série de importantes reuniões da agenda africana, como a Conferência de Durban, de 2001; a I e II Conferências de Intelectuais Africanos da Diáspora, em 2004 e 2006, em Dacar e Salvador; a Conferência da Diáspora Afro-Caribenha, na Jamaica, em 2005; as I, II e III Cúpulas ASA, em 2006, 2009 e 2013, na Nigéria, Venezuela, e Guiné Equatorial e a Cúpula da Diáspora Global Africana, na África do Sul, em 2012. Ficou incompleta. E, por ora, sem seguimento no Togo.