O desafio da integração africana e as Comunidades Econômicas Regionais
O comércio intrarregional ainda responde por menos de 15% do comércio do continente, na Europa esse percentual é de 80% e na Ásia, de 60%
A União Africana, UA, é formada por 55 países, mais do que o dobro da União Europeia. A diversidade interna também é maior do que a existente no bloco europeu, seja na quantidade de línguas, etnias, religiões, panoramas climáticos e de vegetações, e na diversidade das estruturas econômicas. Mesmo com essa diversidade, o bloco africano cobre quase a totalidade do continente, com exceção de dois pequenos enclaves europeus - Ceuta e Melila, sob domínio da Espanha - e algumas ilhas em águas africanas, como Reunião e Mayotte, sob domínio francês; Madeira, sob domínio português; e as Ilhas Canárias, também sob a Espanha. Trata-se de uma unidade territorial notável, comparada com a própia União Europeia, e mesmo com a Organização dos Estados Americanos, a OEA, que não abrange o enclave francês na América do Sul - a Guiana Francesa -, nem o grande conjunto de ilhas sob tutela da França, da Holanda ou do Reino Unido - Martinica, Guadalupe, Aruba, Curaçao, Ilhas Virgens, Ilhas Cayman, Bermuda, sem falar nas Malvinas, dentre outras.
Dentro dessa diversidade, porém, há alguns elementos de identidade que unem geográfica e historicamente os países africanos, ou pelo menos a esmagadora maioria deles. São ex-colônias; independentes há menos de 70 anos; espoliados por países europeus; com histórico de conflitos internos; e que lutam para superar profundas fragilidades socioeconômicas: altos índices de extrema pobreza, insegurança alimentar e desigualdade. São essas circunstâncias comuns o elo de identidade tanto no nível institucional, que se conforma na UA, como no simbólico, especialmente a partir do movimento pan-africanista, tema do texto da próxima semana aqui no Mondo.
Para dar sentido prático e concreto a essa identidade continental, a pauta prioritária da UA evoluiu desde sua criação, em 1963, ainda como Organização da Unidade Africana - OUA. Inicialmente, a independência dos países africanos era a principal bandeira da organização, superada, portanto, ao longo da década de 1960 até a metade da de 1970 como elemento agregador da agenda. A partir daí, a entidade passou a focar no processo de integração continental, como ferramenta para o desenvolvimento. É preciso lembrar que a euforia da independência deu lugar, a partir já do final da década de 1970 a sucessivas crises econômicas e sociais, derivadas tanto das relações desiguais estabelecidas com as ex-metrópoles, que deixaram o controle direto, mas seguiram mantendo forte influência - e a consequente exploração - sobre os países africanos, como também derivadas das crises globais, com efeitos devastadores sobre a frágil economia africana, como as duas crises do petróleo, de 1973 e 1979, e a crise da dívida, advinda do desequilíbrio econômico que se seguiu. Se a década de 1980 foi a década perdida no Brasil, na África foi a década da fome.
Dentro da UA, sempre foi importante a ideia de fomentar a integração econômica, especialmente por meio da liberalização e estímulo ao comércio intracontinental. Historicamente, o passado colonial e a vinculação econômica com as ex-metrópoles gerou um nível muito baixo de integração regional, e isso é avaliado - juntamente com a estrutura das exportações africanas, fundamentadas nos minérios, e sua alta volatilidade, e nos combustíveis - como um dos elementos que prejudicam o desenvolvimento dos países africanos. Em 1978, o comércio intrarregional significa, por exemplo, menos de 4% do fluxo de comércio do continente. Esse percentual aumentou gradativamente ao longo das décadas seguintes, mas em velocidade muito baixa. Apenas em 1996, ultrapassou pela primeira vez 10% do volume total de comércio do continente. Em 2003, atingiu cerca de 13%, e, apenas em 2018, cerca de 15%. Nunca passou disso. O comércio intrarregional na Europa é de cerca de 80% do total e na Ásia, cerca de 60%.
Além dos problemas econômicos, e em alguns casos tendo-os como causa, entre 1979 e 1989, 14e países passaram por importantes conflitos, sejam guerras civis, como Angola e Moçambique, ou disputas internacionais regionais, como a que envolveu a Etiópia, Eritreia e Somália; a que envolveu Egito e Líbia; ou a Mauritânia e Senegal.
A integração como resposta à crise
Em 1980, em resposta à crise econômica, a OUA adota, em parceria com a Comissão Econômica das Nações Unidas para a África, UNECA, estabelecida em 1958, o Plano de Ação de Lagos, a fim de aumentar a cooperação comercial regional. O objetivo era o de reproduzir em outras regiões a experiência da Comunidade Econômica dos Estados da África Ocidental - ECOWAS ou CEDEAO -, criada pelo Tratado de Lagos, em 1975, com 15 países membros e sede naquela cidade, depois transferida para Abuja. Os efeitos da crise, porém, eram profundos e, sem recursos, o plano teve efeitos limitados. Em 1981, foram criadas apenas i) a Área de Comércio Preferencial da África Austral e Oriental, PTA, com 18 membros - que se tornou, em 1994, o Mercado Comum da África Oriental e Austral, COMESA; e ii) a Comunidade Econômica da África Central, mas sem efetividade alguma até 1998. A Comunidade Econômica da África Oriental, criada em 1967, havia sido, inclusive, extinta em 1977, sendo recriada apenas em 2000.
A crise se estenderia ainda para a década seguinte. A taxa de crescimento total da África subsaariana entre 1989 e 1999 foi de apenas 24%. Com a dissolução da URSS, vários países que se apoiavam no bloco soviético passaram a enfrentar dificuldades adicionais agudas, Moçambique e Zimbábue, por exemplo. De 1991 a 2001, 15 países solicitaram auxílio a suspensão do pagamento da dívida externa, mais até do que na década anterior. De todo modo, assim como ocorreu com o Plano de Lagos, de 1980, os africanos apostavam novamente na integração econômica para tentar superar a crise. Em 1991, foi assinado, inspirado no modelo da Comunidade Econômica Europeia, o Tratado de Abuja, para a criação da Comunidade Econômica Africana, que entraria em vigor em 1994. O Tratado estabeleceu um plano gradual de integração que culminaria na criação de um mercado comum africano, em 2025, e na integração monetária, em 2028, passando pela criação de comunidades regionais nas regiões onde ainda não houvesse e pela criação de zonas intermediárias de livre comércio e unidade aduaneira.
As comunidades econômicas regionais
No processo de avanço da integração comercial definido no Tratado de Abuja, foram criadas ou revitalizadas as comunidades econômicas regionais que complementariam a CEDEAO, ativa desde 1975. Em 1992, foi criada a Comunidade de Desenvolvimento da África Austral, SADC; já em 1994, a Área de Comércio Preferencial, PTA, que havia sido criada em 1981, se transformou na COMESA, e foi criada a União Árabe do Magrebe, AMU; em 1996, foi criada a Autoridade Intergovernamental para o Desenvolvimento, IGAD, com os países do Chifre da África; em 1998, foi revitalizada a Comunidade Econômica da África Central, ECCAS, e criada a Comunidade de Estados do Saara-Sahel, CEN-SAD, com apenas seis países, número que evolui para mais de 20 desde então. O CEN-SAD foi revisado em 2013 e reaberto para a confirmação de cada um dos países sobre sua continuidade no acordo. Por fim, em 2000, foi recriada a Comunidade Econômica da África Oriental, EAC - que havia sido extinta em 1977. A partir de 2000, todos os países estavam, assim, integrados nas 8 comunidades econômicas regionais reconhecidas pela entidade continental.
Esses são os oito grupos reconhecidos pela UA:
- ECOWAS ou CEDEAO, Comunidade Econômica dos Estados da África Ocidental, criada em 1975;
- COMESA, Mercado Comum da África Oriental e Austral, criado em 1981, como PTA, e renomeado em 1994;
- ECCAS, Comunidade Econômica da África Central, criada em 1981 e revitalizada em 1998;
- SADC, Comunidade de Desenvolvimento da África Austral, de 1992;
- AMU, União Árabe do Magrebe, AMU, criada em 1994;
- IGAD, Autoridade Intergovernamental para o Desenvolvimento, criada em 1996;
- CEN-SAD, Comunidade de Estados do Saara-Sahel, criada em 1998; e
- EAC, Comunidade Econômica da África Oriental, criada em 1967, extinta em 1977, e recriada em 2000.
A divisão dos países nesses grupos não foi, porém, excludente, já que os Estados foram autorizados a participar em mais de uma entidade. A Somália e a RDC participam, por exemplo, de 4 dos 8 arranjos comunitários; e apenas 5 países participaram historicamente de apenas de um grupo - Argélia, Camarões, Congo, Gabão e Guiné Equatorial. Outros quatro - Cabo Verde, Libéria, Guiné e São Tomé e Príncipe - não renovaram sua participação no CEN-SAD em 2013 e seguem apenas na CEDEAO. Outros cinco, liderados pela África do Sul, só ampliaram sua gama de possibilidades com o Acordo Tripartite, lançado em 2015, que cria a Zona Tripartite de Livre Comércio, com os países do COMESA, EAC e SADC, em um total potencial 29 países, depois da recente expansão desses grupos. A entrada em vigor ocorreria a partir do momento da ratificação de 14 signatários. Até agora, apenas 22 dos 29 assinaram e apenas 12 ratificaramo acordo. Os prazos iniciais para a ratificação foram adiados algumas vezes, mas sete países habilitados ainda nem haviam assinado até aquele momento: Moçambique, Etiópia, Eritreia, Lesoto, Somália, Sudão do Sul e Tunísia. A eventual nova Zona Tripartite se adiciona ao espaço do CEN-SAD revisado como processos intermediários, mais amplos do que as comunidades regionais iniciais.
Zona de Livre Comércio Continental da África
É nesse ambiente que, em 2018, foi assinado em Kigali o Acordo para a criação da Zona de Livre Comércio Continental da África. Firmado na ocasião por 44 dos 55 membros da União Africana, entrou em vigor já em abril de 2019, após o 22.o país signatário ratificar o documento. Até agora, não foi assinado apenas pela Eritreia, e já foi ratificado por 47 membros da UA, incluindo a República Saarauí, faltando apenas Madagascar, Somália, Benim, Líbia, Libéria, Sudão e Sudão do Sul. O acordo está, assim, em pleno vigor, seguindo as etapas ordinárias para sua consolidação. Um secretariado de seguimento, que responde diretamente ao Conselho Executivo da União Africana, foi instalado em Acra. Em tese, trata-se do último estágio da integração continental, mas o processo ainda está longe de se completar.
O aumento do volume do comércio implicaria, entretanto, em capacidades internas de produção, especialmente industrial, mas também de produção de alimentos, no continente para suprir parte da demanda de maneira autóctone. Do mesmo modo, seria necessário aumentar a indústria para que parte da produção mineral africana pudesse ser empregada em linhas de produção no continente. Em vários países, observa-se, porém, a diminuição da parcela da indústria na economia - sintoma de desindustrialização -, na contramão, portanto, do que se vislumbra como requisito para o aumento de comércio desejado. O resultado é um déficit na balança comercial persistente, com a importação de produtos industrializados - em 2020, por exemplo - o setor automobilístico foi responsável por um déficit de US$ 39 bilhões na balança comercial continental, déficit esse que segue sendo compensado parcialmente a partir da exportação de minérios.
Mesmo com a entrada em vigor do Acordo que cria a Zona de Livre Comércio Continental, o regime de integração do espaço africano tem seu lastro nas comunidadades econômicas regionais. A compreensão desses grupos, entretanto, não é simples, pois a realidade africana apresenta um emaranhado de outras variáveis e subgrupos, com a confusão, mesmo em artigos e textos científicos, sobre o conceito das comunicades com esses outros subgrupos, incluindo, por vezes, comparações entre entidades de categorias diferentes. Abaixo, algumas indicações de como essas confusões ocorrem:
(i) além da participação de países em diversas comunidades, gerando muitas sobreposições, os estágios de integração desses grupos são diversos, com comunidades em estágios avançados, com a eliminação de visto e a existência de um mercado comum significativo, como a CEDEAO, e outras apenas semi-integradas como a IGAD;
(ii) a morosidade na finalização de processos de adesão dos países - e os anúncios que não se concretizam - gera sobreposição de informação sobre iniciativas apenas anunciadas e aquelas efetivamente implementadas, tornando difícil a identificação da informação mais atualizada;
(iii) existem subgrupos consolidados dentro de algumas comunidades regionais, cuja institucionalidade sobrepuja a de comunidades mais recentes ou menos integradas. A União Monetária do Oeste Africano, por exemplo, está inserida na CEDEAO, e é composto por 8 de seus 15 países. Nesse subgrupo circula de maneira unificada o Franco CFA Ocidental. Até isso gera, ainda, outra confusão, pois dentro da Comunidade da África Central, a ECCAS, seis dos 11 países se organizam em outro subgrupo de união monetária e utilizam de maneira unificada o Franco CFA Central, com o mesmo valor do Franco CFA Ocidental, mas sem interoperabilidade. Outro exemplo de subgrupos com grande institucionalização é a União Aduaneira da África Austral, SACU, que reúne 5 dos 16 países da SADC, sob forte liderança da África do Sul;
(iv) apesar da coincidência entre a CEDEAO e a região da África Ocidental, subdivisão política utilizada no mecanismo oficial usada pela UA para os processos de rotação dos seus quadros institucionais, os limites das outras comunidades econômicas não se confundem com os da divisão regional institucional da UA. Há grande sobreposição da SADC com a região da África Austral, e da ECCAS com a região da África Central, mas nem mesmo essas são plenamente coincidentes. É comum artigos compararem grupos de intergação econômica reconhecidos pela UA com subgrupos da divisão política, com uso indiscrimando e não exato dessas divisões. Para completar, nenhuma das duas divisões coincide com a divisão usada pela ONU, também em número de cinco, para a consolidação de dados estatísticos gerais sobre o continente;
(v) existem outros subgrupos, não reconhecidos no processo de integração econômica da UA, mas com longo histórico de integração em vários setores como comércio e defesa e segurança, como o Conselho da Entente, que reúne, desde 1959, seis países do Centro-Oeste da África; a Comissão da Bacia do Lago Chade, criada em 1964, atualmente com 6 membros e 4 observadores; a União do Rio Mano, que reúne Libéria e Serra Leoa desde 1973, e posteriormente Guiné e Côte d’Ivoire; a Comissão do Oceano Índico, que reúne, desde 1984, Madagascar, Comoros, Seychelles e Maurício; a Autoridade Liptalo-Gourma, com Burquina Fasso, Mali e Níger desde 1970 - neste caso, em processo de retomada, com a formação da Aliança dos Estados do Sahel, em 2023, que devem deixar a CEDEAO; a Comunidade Econômica dos Grandes Lagos, com Burundi, RDC e Ruanda, desde 1974, pouca ativa; e outras mais recentes, mas igualmente abrangentes, como a Comissão do Golfo da Guiné, de 2001, atualmente com 9 membros; o Processo de Nouakchott, de 2013, estagnado, mas com 11 membros; o Grupo G-5 Sahel, criado em 2014; e a Iniciativa de Acra, de 2017, com 5 países membros e 2 observadores; e
(vi) o fato de a União do Magrebe, AMU, estar quase integralmente - com exceção da Mauritânia, em processo de adesão - inserida na Grande Área de Livre Comércio Árabe, GAFTA, no âmbito da Liga Árabe, o que diminui a importância da entidade subregional exclusivamente africana para seus membros, já que, por meio do GAFTA, têm acesso não apenas ao mercado dos outros países africanos do grupo, além de Somália, em processo de adesão ao GAFTA, como também ao restante dos países árabes.